A confissão

A confissão

  Ele a sequestrou a fim de lhe contar a historia da sua vida. Usou clorofórmio para fazê-la adormecer quando a abordou em seu carro, durante a noite. Assim a levou para sua casa e a prendeu em uma poltrona, retirando a mordaça depois que ela acordou. Ele a tratava com certa delicadeza, chamando-a de senhora e querendo saber sua opinião sobre os fatos que narrava.

 

Nessas circunstâncias ele começa a narrar sua vida. Era um rapaz pobre, solitário e até mesmo medroso. Vivia do roubo de livros. Roubava livros de bibliotecas e livrarias e vendia nos sebos. Vez ou outra tinha um cliente, como foi o caso de um senhor, que lhe encomendava livros e comprava todos, mesmo não sendo os que ele tinha pedido. Com o dinheiro que ganhava pagava o quarto na pensão miserável que vivia e se alimentava. Muitas vezes passava fome, mas já sabia lidar com ela. Tinha o hábito de ir ao cinema e também gostava de tomar vinho, mesmo não tendo paladar para isso.

Foi por esse motivo que conheceu sua vítima, a viu em um restaurante de luxo, ela não o viu. Ele suplicou com os olhos que ela o ensinasse a apreciar vinhos como ela fazia naquele instante. Mas ela estava alheia ao mundo fora do restaurante. Era uma mulher rica, não reparava em rapazes pobres da rua. Naquele dia ele pensou que a mataria.

Um dia voltando do cinema, viu uma moça no ônibus, Emma, ela carregava duas garrafas de vinho e lhe chamou extremamente a atenção. Pela pele da nuca, que era o pouco do corpo dela que ele podia ver, deduziu sua idade. Quando ela desceu, ele fez o mesmo e a seguiu sem que ela percebesse. Assim a viu tocar a campanhia de um sobrado e uma luz se ascender no piso superior e segundos depois alguém abriu a porta, pegou as garrafas e entrou, Emma acompanhando. No dia seguinte ele fez o mesmo caminho da noite passada, mas para sua surpresa o sobrado era um prédio abandonado, não havia nem mesmo uma janela no segundo andar.

Mas ele teve outro encontro com Emma, encontrou-a na porta do restaurante em que vira sua vítima. Ele olhava os cardápios exposto na porta, eles trocaram um sorriso e ele a convidou para um almoço. Almoçaram, a conta, Emma pagou, ele não tinha dinheiro. Ela falava sobre os sabores da comida, sobre o sabor do vinho e os ingredientes de tudo aquilo, mas ele não via diferença. Passaram o dia juntos, à noite, dormiram juntos. Ele estava apaixonado por Emma. Queria perguntar pra ela sobre o sobrado, mas achou melhor deixar pra outro dia.

No dia seguinte quando se levantou e ia para a cozinha beber água, encontrou um livro de colecionador na estante de Emma, e dentro dele, 500 dólares. Depois de muito pensar decidiu levar só o livro. Foi nesse momento que ouviu um homem bater na porta, e com o tempo ficar irritado. Acabou indo embora pelos fundos, levando o dinheiro e o livro. Depois de pouco tempo viu no jornal que Emma havia morrido, encontrada morta na sua cama, mas nada levava a um assassinato.

Desde aquela noite com Emma a vida dele havia mudado, sua primeira ação ao sair do apartamento dela foi voltar ao restaurante e comer tudo que havia comido no outro dia. Mas desta vez ele sentia os sabores, ele sabia apreciar. Quando viu a morte de Emma estampada em uma coluna do jornal, ele sofreu muito, e de alguma forma soube que era o culpado. E então foi pesquisar, passava horas na biblioteca da cidade, buscando a explicação.

Foi assim que ele acabou desmaiando no meio da rua, estava fraco porque se alimentava muito mal. E foi socorrido por Agnes. Ela era médica no Instituto responsável por tratar de moradores de rua. Ele ficou mais tempo que o necessário no instituto. Agnes e ele desenvolveram um relacionamento. Ela ouvira muita coisa que ele dissera em delírios enquanto não acordava do desmaio.

Assim ela sabia que ele estava pesquisando sobre vampiros na biblioteca, e sabia sobre Emma. Depois que ele saiu do Instituto, eles se encontraram. Ele decidiu que não ia dormir com ela porque sabia que aquilo a mataria. E assim, no primeiro encontro deles, ela só contou sobre sua vida. Contou como virara médica porque o pai quis que seguisse os seus passos, contou sobre como na faculdade teve uma grande amiga, Lucia, e que, juntas, foram para Itália e as duas nutriam uma paixão por livros de vampiros, contou como Lucia viveu um romance durante a viagem e que um dia a assustou perguntando como seria morrer de amor, e assim no mesmo dia ela a encontrou em um último momento, com os olhos brilhantes, nua em sua cama no hotel, logo depois de ter visto o namorado que ela tinha feito deixando o hotel.

Agnes contou como depois ela entregou um papel pra ela com o nome de uma biblioteca e o nome de um frei, quando ela estava no aeroporto de partida, e como ela voltou para o Rio de Janeiro, e dedicou sua vida a descobrir o que matara Lucia, assim voltou para Itália e leu os textos daquele frei que contava o que ele era na verdade.

Ele queria saber mais, mas Agnes disse que não contaria que ele teria que tomar dela. Assim ele foi embora, mas dias depois a encontrou na porta da pensão, debaixo da chuva e então eles foram para casa dela, comeram e ele falava sobre o vinho e viagens a vinhedos, tudo baseado nas lembranças de Emma. Dessa vez eles dormiram juntos, no dia seguinte ele foi embora sabendo o que era: Vampiro, e sua habilidade era roubar as memórias e experiências das pessoas com quem dormia. Agnes havia deixado suas joias arrumadas em uma maleta visível. Eram muitas e de valor, ele teria dinheiro por tempo suficiente.

Começava uma nova etapa na vida dele, vendeu uma pulseira para um dono de sebo que era seu comprador, depois comprou essa casa onde estava com a sua vítima, e por fim viajou.

A essa altura já era um homem, era bem mais ciente do que era, e se tornara bem mais sofisticado graças ao que roubara de Emma e Agnes. Foi assim que chegou a Londres, lá dormiu com uma garota chinesa e assim seguiu viagem para o vilarejo de onde ela tinha vindo. Ficou na casa dela e desfrutava da paz de um local onde a civilização não tinha chegado. Naquele lugar tentava se encontrar, quando uns fotógrafos franceses chegaram, instantaneamente não gostou deles, dois homens e uma mulher. Quiseram lhe entrevistar, mas ele acabou desistindo. Quando fazia uma trilha pela floresta do local, a fotógrafa o seguiu para tentar a entrevista de novo, ela era a primeira pessoa que ele quis matar só para fazer-lhe mal, dormiu com ela também ali mesmo na floresta, no dia seguinte foi para Bruxelas.

Porém, ele sempre descia nas pontes aéreas que seus voos faziam. Foi assim que parou em Lisboa, onde dormiu com uma prostituta romântica que iria se matar no dia seguinte.

Já tinha se passado cerca de dez anos, e as viagens não o satisfaziam mais. Seu último destino foi Bruxelas. Lá encontrou um homem gordo que dizia saber a língua dos pombos e saber quem ele era na verdade. Depois disso voltou para o Brasil.

Buscou os locais que frequentava antes de se tornar aquele novo homem. E foi nessas andanças que em um bar que frequentava encontrou na mesma mesa que se sentava um jovem idêntico a ele, talvez era ele mesmo mais novo. Perguntou quem era, mas o jovem não respondeu, o seguiu até a pensão e lá o jovem simplesmente desapareceu. Uma moradora nova disse não saber quem era esse, e seu antigo vizinho reconheceu a descrição, mas disse que o tal rapaz tinha ido embora a tempo.

Nesse dia, andando pela cidade, ele conheceu Inês. Era violinista, a seguiu até um bar onde ela se encontrou com amigos, ouviu toda sua conversa e a seguiu no ônibus, viu que ela era apenas amiga de um dos jovens do grupo que claramente tinha maiores interesses. E a seguiu quando ela desceu do ônibus. Quando dois jovens meio bêbados a importunaram, ele a socorreu e assim se conheceram. Inventou uma história que a tinha visto no ensaio aberto que teve na faculdade e quando questionado, perguntou se ela queria ouvir uma historia. Ela disse sim.

Eles foram jantar, e no final estavam interessados um no outro. Inês estava apaixonada, ele não queria se envolver porque sabia que acabaria matando-a. Foi em uma de suas conversas que ela disse que era filha da sua vitima, da mulher que ele tinha sequestrado. Para sua imensa surpresa. Inês estava muito envolvida e ele fugia dela, mas ela conseguira seu telefone e seu endereço. Ela foi vê-lo, mas ele estava decidido a não matá-la, assim, depois de um beijo, ele foi pegar uma surpresa e a mandou esperar de olhos fechados. Ela desmaiou com o clorofórmio, e ele colocou-a no carro e a deixou no estacionamento do seu prédio, em seu carro.

A essa altura ele estava cansado de ser aquele novo homem, queria poder voltar ao começo. E chegou à conclusão de que o que o impedia de ser aquele outro era ter perdido o medo. Era esse o motivo de ter sequestrado a mãe de Inês. Ela estava com medo agora, e dormindo com ela, poderia roubar dela o medo e voltar a ser o mesmo homem que era anos atrás, mesmo que fosse mais velho. Era isso que queria.

 

Autor do livro: Flávio Carneiro 

 

Fonte: Site Brasil Escola, escrito por Rebeca Cabral.